Disse o gato

  Sempre me surpreendem os dedos. A sua existência assusta-me (que querem?) e sigo-os, de olhos abocanhados ao movimento (que fazem?). Tenho-os presos na boca da minha imaginação. Os músculos (tenho-os) tensos, preparados na flexão dos membros. Só a cauda ondula, poética, denunciando-me. As pontas das orelhas roídas (como?), a marca de uma pedra na costela (entretecida no ventre da minha mãe, como?), e ainda assim (admiráveis) os meus dentes, cravos poderosos de uma soberania sozinha, as minhas garras, isqueiros rápidos do corpo, e o meu pêlo, um derramamento pela pele do mais íntimo de mim, cheio de fome e sede do outro, dos seus dedos, aqueles que estão ...

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A Calma É Um Braço

  A calma é um braço. Há um lago de leite e, ao fundo, o pôr do sol, esvaindo-se em tons de salmão. Esta é a hora. Um dedo toca o oceano brando, e um relevo de círculos concêntricos deixa-se embalar no sussurro da brisa e das águas lentas. Os flamingos da minha imaginação esvoaçam, banham-se, descansam de pé sobre uma pata. O silêncio é o som das aves, da brisa, da água, recapitulado. Um braço humano eleva-se e abre na elegância de um arco. A cabeça reclina-se sobre o ombro nu. O ar ...

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A Raiva Tem Dentes De Cão Pequeno

  A raiva tem dentes de cão pequeno. Sempre demasiados, Demasiadamente agudos, Longilíneos como pincéis. Contidos (sempre) num espaço (que é) ínfimo. E extravasada, ainda assim, o ar é uma bochecha. A raiva, contida sempre, miudinha, proibida, invade de dentro para fora, prestes (dentro da boca) a perfurar um vaso tenso e a lançar-se, líquida, em bossas. O lábio inferior, trémulo, sanguíneo. Os salpicos de cuspo profetizando vómito (tragam toalhas). Irrompe como um relâmpago, desirmanada do corpo que dança aos solavancos automáticos de uma convulsão febril. E fura, mas sempre os dentes, demasiado pequenos num cão demasiado pequeno que ...

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Mesa

    Há uma mesa algures no deserto Tu não a vês como ela é Nem sabes quem a pousou ali Ela é somente. Quatro pernas Um tampo. E mais nada. No deserto há o golpe de sol, A areia e o vento. Eu não a vejo como ela é. A toalha é branca e simples. Há aromas de flores, cedro e limão. Põe a mesa por favor (como é a tua mesa?). Posso sentar-me e comer contigo? Não tarda, vou embora. Que eu sou feita de ir ...

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Metamorfose da Palavra

  A palavra muda Primeiro é barro e depois é vaso E depois é caco e depois é pó. Para ser refeita precisa de ser amolecida Com água. Plasme-se, pois, a poça no chão, verta-se a chuva, Resvale a água montanha abaixo, Suba o oceano, Para que se dê a metamorfose da palavra. E esta, que era estéril, Dê um milhar de sementes E estas, atiradas à terra, Dêem milhões de árvores. Venha a palavra nos frutos, Mas também nas dores E nos bocejos E ainda no ...

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