A Cevada de Rute

 

“Deixa-me colher e juntar espigas por entre os molhos após os segadores.” (Rute 2:7)

 

Tenho pensado em Rute.

Aflorou no meu pensamento quando pensava na imensa vulnerabilidade dos migrantes.

Quando se dão crises socioeconómicas em algum lugar, seguem-se movimentos migratórios dos locais onde escasseia o alimento, o emprego, o dinheiro, as oportunidades, a paz, a segurança, etc, para locais onde estes são mais abundantes. Facilmente se conclui que, desde há milénios, os cereais são um forte atractivo e uma das principais bússolas destes movimentos populacionais.

Rute e Noemi chegaram a Belém no princípio da sega da cevada. Tinham viajado a pé, partindo de Moabe, terra natal de Rute.

A cevada foi um dos primeiros grãos cultivados no Crescente Fértil, estimando-se que tenha sido  domesticada em 8000 AC a partir do seu progenitor selvagem Hordeum spontaneum. Os registos arqueológicos dão conta do cultivo da cevada em 5000 AC no Egipto, em 2350 AC na Mesopotâmia, em 3000 AC no noroeste da Europa, e em 1500 AC na China.

A cevada, Hordeum vulgare, foi a principal “planta do pão” dos hebreus, gregos e romanos e também de grande parte da Europa até ao século XVI. Actualmente, representa a quarta maior colheita de grãos do mundo (depois do trigo, o arroz e o milho).

Rute e Noemi estavam de luto. Rute, do marido. Noemi, do marido e dos filhos.

E a história começa assim: “E sucedeu que, nos dias em que os juízes julgavam, houve uma fome na terra”.

Não é certo, mas levanta-se a hipótese de ter sido Samuel o seu escritor, por volta do ano 1322 AC.

Falava de fome.

Pois bem, foi este o motivo que levou Elimeleque, efrateu, natural de Belém de Judá, a “peregrinar nos campos de Moabe”. Consigo foram a esposa, Noemi, e os seus filhos, Malom e Quiliom.

Moabe ficava do outro lado do Mar Morto. Terra montanhosa. Povo em frequente conflito com Israel. A língua talvez não fosse muito diferente. A religião, ao contrário da de Israel, era politeísta.

A família procurou saciar a fome no campo deste povo estrangeiro.

Assentaram.

O marido de Noemi não mais regressou ao país natal. Noemi enviuvou.

Os filhos cresceram e casaram com mulheres da terra que os acolhera, as moabitas Rute e Orfa.

Depois, também estes morreram. Sobraram três mulheres, cada uma com a(s) sua(s) perda(s). Aqueciam-se em conjunto, em torno da fogueira desolada do luto.

Mulheres, em tempo de homens. Viúvas, em tempo em que eram votadas ao desprezo. Uma das quais desfilhada. Como (sobre)viver daqui para a frente?

Adaptável a um espectro climático mais amplo do que qualquer outro cereal, a cevada possui variedades em áreas temperadas, subárcticas ou subtropicais. Embora o crescimento se dê melhor em estações de pelo menos noventa dias, é capaz de crescer e amadurecer num período mais curto do que qualquer outro cereal.

Corriam rumores de que em Belém havia alimento outra vez. Esta notícia foi uma brisa de alento para Noemi.

As três mulheres levantaram-se e começaram a caminhar. Para Noemi seria um regresso. Agora seria a vez de Rute e Orfa serem estrangeiras do outro lado do Mar Morto.

Davam passos iguais uns aos outros quando, num instante, Noemi se deteve. Olhou para as mãos. Já tinha perdido quase todos, quase tudo. Abriu as mãos. Completamente. Não quis agarrar, não quis reter. Quis libertar, desenlaçar quem também tinha perdido muito. As suas noras.

“Ide, voltai cada uma à casa de sua mãe; e o Senhor use convosco de benevolência, como vós usastes com os defuntos e comigo. O Senhor vos dê que acheis descanso cada uma em casa de seu marido.”, disse.

Noemi beijou-as. Levantaram a voz do sofrimento e choraram juntas.

Achando que nada tinha para lhes oferecer e que nada havia para esperar, insistiu com as noras para que seguissem o caminho da casa materna.

Choraram outra vez, sonoramente, juntas.

Orfa despediu-se e foi. Rute, porém, apegou-se a Noemi. “Eis que voltou tua cunhada ao seu povo e aos seus deuses: volta tu também após a tua cunhada”, reiterou Noemi.

Foi então que Rute declarou, férrea, irredutível: “Não me instes para que te deixe e me afaste de ao pé de ti: porque aonde quer que tu fores irei eu, e onde quer que pousares à noite ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus; onde quer que morreres morrerei eu, e ali serei sepultada: faça-me assim o Senhor, e outro tanto, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti”.

E foram.

Tempo e passos. Algumas pausas. Finalmente, chegaram a Belém.

“Cheia parti e vazia cheguei”, disse Noemi.

E quis mudar de nome. “Não me chamem Agradável (significado de Noemi), chamem-me  Amarga (Mara)”, instou às suas conterrâneas saudosas. “Porque grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso”.

Com maior resistência ao calor seco do que outros pequenos grãos, a cevada floresce em áreas próximas do deserto no Norte de África, onde é semeada principalmente no outono. As plantações semeadas na primavera são mais bem-sucedidas nas áreas mais frias e húmidas da Europa ocidental e da América do Norte.

Olharam em volta. Os campos, brancos. Um som de vento e fricção. A sega da cevada tinha começado.  As mãos rápidas dos ceifeiros tocavam harpa nas espigas. Colhiam e avançavam. Colhiam e avançavam.

O apelo do estômago vazio, um pensamento que lhe exigia ocupar-se, um sentimento de apego, um desejo de cuidar de Noemi foram as mãos que empurraram Rute para o campo.

Seguiu no encalce dos ceifeiros. Estes recebiam o salário ao fim de cada jornada de trabalho. Rute, não. Pediu a um dos segadores autorização para respigar. Quer isto dizer recolher as espigas e os grãos que escapassem às mãos dos segadores ou o que caísse no chão. E levava para casa. Fariam pão.

Ainda hoje, a farinha de cevada é utilizada para fazer pão de tipo ázimo (achatado) e papas, especialmente no Norte de África e em partes da Ásia, onde continua a ser um grão alimentar básico. Por conter pouco glúten, uma substância proteica elástica, a cevada não serve para fazer pão poroso (“insuflado”).

Actualmente, é utilizada principalmente como forragem verde e ração para o gado; como fonte de malte para bebidas alcoólicas, especialmente a cerveja; e ainda na produção de medicamentos; para além de ser componente de flocos e farinhas para panificação.

Boaz era o dono daquele campo. Pertencia à família e geração de Elimeleque, sogro de Rute.

Um servo deu conta do quanto Rute se esforçava dia após dia, do pouco descanso, e do cuidado que manifestava para com Noemi.

Um olhar de graça pousou em Rute.

“Que o Senhor recompense o teu feito. Que o Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio, te recompense ricamente”. Com estas palavras abençoou Boaz a Rute. E também com indicações aos seus servos para que favorecessem o trabalho desta estrangeira, a aproximassem das condições de trabalho dos jornaleiros e avolumassem o que esta recolhia e levava para casa.

Comentando com Noemi o sucedido, esta viu no agir de Boaz a mão providencial de Deus:

“Bendito seja ele no Senhor, que não tem deixado a sua beneficência nem para com os vivos nem para com os mortos”.

Um toque de graça humedeceu os olhos cansados de Noemi. Abriu-os e viu em Boaz um remidor. “Ele será restaurador da tua vida e consolador da tua velhice”, concordavam as conterrâneas.

Com efeito, a redenção chegaria. Da viuvez de Rute, no despertar de descendência aos que tinham partido, e colocando um neto no regaço de Noemi para esta cuidar.

De seu nome, Obede, viria a ser pai de Jessé, avô de David. Raiz de Jesus.

No campo científico, procura-se desenvolver variedades capazes de produzir sementes suficientes mesmo sob condições de elevada temperatura ou seca.

Afinal, como nasce um redentor na aridez do luto, na secura do deserto, no calor de uma terra estranha?

Eis que, de repente, Belém (Beit Lechem) volta a significar “Casa do Pão”.

 

Abigail Ribeiro

 

Bibliografia:

– Livro de Rute (in Bíblia Sagrada)

– Encyclopaedia Britannica (www.britannica.com/plant/barley-cereal)

 

 

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