Disse o gato

 

Sempre me surpreendem

os dedos.

A sua existência assusta-me

(que querem?)

e sigo-os,

de olhos abocanhados

ao movimento

(que fazem?).

Tenho-os presos na boca

da minha imaginação.

Os músculos (tenho-os)

tensos,

preparados na flexão

dos membros.

Só a cauda ondula,

poética,

denunciando-me.

As pontas das orelhas

roídas

(como?),

a marca de uma pedra

na costela

(entretecida no ventre

da minha mãe,

como?),

e ainda assim

(admiráveis)

os meus dentes,

cravos poderosos

de uma soberania sozinha,

as minhas garras,

isqueiros rápidos do corpo,

e o meu pêlo,

um derramamento pela pele

do mais íntimo de mim,

cheio de fome e sede

do outro,

dos seus dedos,

aqueles que estão na boca

da minha imaginação.

As polpas lembram

almofadas, cama, ninho morno.

Esqueço-me até dos ossos,

do esqueleto dos dedos,

da morte nos dedos,

porque há neles músculo,

e vontade,

e voz.

A minha pele arde

debaixo do pêlo

– que farei ?

– lambo o meu destino.

Ele quer da minha boca

as palavras.

Que tenho eu dentro de mim

que faz nascer os dias?

Tanta treva

e, no entanto,

bolsas de luz nos olhos,

verbo aceso,

feixe fino discernindo

a beleza

no meio das pedras.

O meu pêlo pede (como?)

dedos,

mãos completas,

afago,

apego,

não o anonimato

dos gatos

da rua.

Quero a voz

que me chama

pelo

meu

nome

(há maior delícia do que esta?)

e a sua casa.

 

 

 

Abigail Ribeiro

9 de Janeiro de 2023

 

Imagem: «Gato», de Yutaka Murakami

 

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