O Reino Peculiar (Salvadora persica)

 

«Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante ao grão de mostarda que o homem, pegando nele, semeou no seu campo; o qual é, realmente, a menor de todas as sementes; mas, crescendo, é a maior das plantas, e faz-se uma árvore, de sorte que vêm as aves do céu, e se aninham nos seus ramos.»

Mateus 13:31-32

 

Jesus anunciou um reino peculiar. Imagino os seus contemporâneos a vê-lo e ouvi-lo, inclinando a cabeça para um lado e para o outro, várias vezes, em pouco tempo, como fazem, graciosamente, os cães. Chamava-lhe “Reino dos Céus”.

Era estranho este reino. Começava de algo muito pequeno, como um grão de mostarda, e tornava-se em algo muito grande, como a Salvadora persica, a árvore da mostarda. Começava, não havendo lugar para ele (como quando Jesus estava para nascer), mas uma semente germinava e transformava-se no Lugar. Um espaço grande, estruturado, abrigado do sol escaldante, onde apetecia fazer ninho, morar.

Estranhíssimo. Quem quisesse fazer-se grande deveria ser um serviçal. O líder deveria ser como o que serve. Numa de várias ilustrações vivas, Jesus lavou os pés aos discípulos. A reação destes foi de perplexidade e um deles disse que não podia aceitar ser servido pelo mestre. Seguiu-se mais uma frase desconcertante de Jesus a Pedro: “Se eu não te lavar, não tens parte comigo”. Para além disto, instruiu os seus seguidores a não deixarem tratar-se por “mestres” ou “doutores” e a olharem-se uns aos outros como irmãos.

Porém, cada um devia olhar para si e corrigir-se, em vez de apressar-se a apontar os erros do irmão ou da irmã. E deveria amar o outro como a si mesmo. Como? Sim, Jesus disse isto. Aliás, em resposta a um grupo de fariseus que o colocavam à prova, fez a seguinte síntese: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo semelhante a este é: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.” (Mateus 22:37-40). A palavra “amar” é crucial, prevenindo o resvalar para a distorção de tantas irmandades ditatoriais de natureza religiosa ou política.

Sim, a estranheza não se esgota aqui. Jesus reinterpretou a Lei e os Profetas, ou, dito de forma mais abrangente, o Antigo Testamento, o Velho Pacto. Ressuscitou o espírito da Lei, que andava ressequida como ossos de um ritualismo vazio. Desafiou tabus, ousou aplicar os textos sagrados de forma nova e a novos contextos e, como um esteta, trouxe um olhar cheio de luz, extraindo beleza de quase tudo. Ampliou o Pacto a todos os gentios, os não-hebreus, fazendo questão de propor a religação a Deus, honrando-os, com equidade, aos olhos de todos.

O reino que anunciava parecia um edifício ao contrário. A base estava nos Céus e crescia de cima para baixo e também transversalmente. Exato, uma cruz.

A cruz é um elemento muito curioso em tudo isto. Na época em que Jesus viveu (7-2 A.C. a 30-33 D.C.), a Judéia era uma província do Império Romano. A crucificação era, então, uma forma usual de pena capital para criminosos, militares desertores, gladiadores, rebeldes, escravos e outros que não tivessem a cidadania romana. Ora a mensagem de Jesus era estranha, inquietante, revolucionária. Por outro lado, à luz da lei mosaica, ser crucificado (por ser pendurado) representava ser considerado “maldito”.

Como se não bastasse a dupla injustiça, os discípulos já tinham ouvido de Jesus palavras sísmicas como: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.” (Mateus 16:24-27). Isto significa, entre outras coisas, que Jesus aceitou submeter-se à injustiça e fez a apologia da renúncia ao “eu” como forma de vida.

Anteriormente, tinha-se pronunciado acerca do que considerava ser “bem-aventurado”. E não, não era ser rico, influente, poderoso, eloquente, alegre, combativo, reivindicativo… No reino peculiar que anunciava, valorizavam-se os humildes, os sofredores, os injustiçados, os perseguidos, os que perdoavam, os conciliadores, os “limpos de coração”… Jesus propunha, assim, uma nova forma de olhar o sofrimento e a vulnerabilidade. Admitir o sofrimento como parte da vida e vivenciar a vulnerabilidade de uma forma esperançosa representava aceitar a morte, ou melhor, dispor-se a morrer, e, por conseguinte, superar a morte, viver acima da morte. Sim, palavras difíceis de engolir, que escandalizaram e continuarão a escandalizar de século em século.

Quem quisesse mudar-se para este reino peculiar consentia em abdicar do controlo feroz de si, da sua vida e das circunstâncias e submetia-se ao “jugo suave” e ao “fardo leve” de Jesus, um professor “manso e humilde”. O estilo de vida preconizado baseava-se no depender de Deus e no resistir à tentação de competir com Ele. Isto por oposição aos jugos esmagadores e fardos pesados de outros estilos de vida, em que a luta pelo controlo e pelo poder acarretava, não infrequentemente, ansiedade, mesquinhez, maldade, violência.

Uma outra frase estranha foi: “A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (João 4:34-35). Como quem diz “alimento-me de obedecer a Deus”. Esta palavra – obediência – arrepia a pele de um habitante do século XXI, habituado ou instigado a exigir o que considera pertencer-lhe, o que, no limite, pode ser praticamente tudo.

Ainda a propósito de comida e de morte – que estranha combinação de conceitos caros ao Cristianismo – Jesus gostava de estar e de comer com as pessoas. A comida promove o encontro e a partilha. Na última Páscoa que celebrou com os discípulos, referida frequentemente como “última ceia”, quis que estes o vissem como pão e como vinho. “Tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado” (Lucas 22:19). “Este cálice é o Novo Testamento no meu sangue, que é derramado por vós” (Lucas 22:20). Estas afirmações deixam entrever que Jesus estava ciente do que aconteceria após aquela refeição e que estava disposto a submeter-se a uma sequência de acontecimentos que teriam como desfecho a sua morte por crucificação. Considerava que o seu sofrimento não seria em vão. Desde que aceitassem a dádiva da sua vida (simbolizada no comer / interiorizar / assimilar o pão-corpo e no beber / apropriar-se do  vinho-sangue), os discípulos e todos os que o seguiam ou viessem a seguir, beneficiariam de um sacrifício eterno que lhes permitiria o estar em vida de relação com Deus. Milénios antes, os holocaustos de animais executados por sacerdotes da tribo de Levi eram o meio de os hebreus expiarem os seus pecados e poderem manter-se em contacto com “Eu Sou” (YHWH). Jesus fazia-se, assim, substituir ao cordeiro dos holocaustos e, simultaneamente, assumia a função de sumo-sacerdote, que intermediava o povo e Deus. Passa a haver uma ênfase na adoração “em espírito e em verdade”, em vez de um ritualismo esvaziado.

O Cristianismo não se encerra na morte. Esta é um conceito fundamental, mas é um meio e não um fim. A finalidade é a ausência de fim, isto é, a vida eterna.

À crucificação seguiu-se a ressurreição de Jesus. Depois ascendeu e deixou um substituto, o Espírito Santo. Há uma extraordinária beleza e coerência na narrativa cristã. Deus corporiza-se e vive entre a humanidade, na pessoa de Jesus. Este submete-se, resumindo-se aos limites do ser humano e, fazendo-o, transcende-se, estando aberto a manifestar o poder de Deus, o Pai, a quem obedece. Morre e ressuscita, vencendo a morte. Acrescenta: “Convém-vos que eu vá, porque se eu não for, o Consolador não virá até vós; mas se eu for, enviar-vo-lo-ei. E quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juizo.” (João 16: 7-8). O Consolador é o Espírito Santo. Acerca deste diz Jesus: “Quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir.” (João 16:13). Assim, Jesus ascende aos Céus, deixando de estar com a humanidade em corpo, mas Deus mantém-se presente espiritualmente (através do Espírito Santo).

Não admira que o ciclo de vida de uma planta como a Salvadora persica seja uma boa metáfora do reino peculiar. A pequena semente de mostarda é lançada à terra e germina, cresce, desenvolve-se, ramifica, floresce, frutifica. O fruto cai na terra e esta “morte” é necessária, para que a semente, debaixo da terra, germine, dando origem a uma nova planta (ressurreição). Os ciclos e ciclos que se repetem são uma forma de eternidade, à qual subjaz o Velho Pacto e a transformação deste em Novo Pacto.

 

 

Abigail Ribeiro

17/02/2023

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