Metamorfose da Palavra

  A palavra muda Primeiro é barro e depois é vaso E depois é caco e depois é pó. Para ser refeita precisa de ser amolecida Com água. Plasme-se, pois, a poça no chão, verta-se a chuva, Resvale a água montanha abaixo, Suba o oceano, Para que se dê a metamorfose da palavra. E esta, que era estéril, Dê um milhar de sementes E estas, atiradas à terra, Dêem milhões de árvores. Venha a palavra nos frutos, Mas também nas dores E nos bocejos E ainda no ...

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Sede

  O mar deixou de fazer a cama (é sempre assim no verão). Passa só os dedos, tira as engelhas (isso basta-lhe) E sorri para dentro (sereno). O verão é uma espécie de entardecer para o mar (engana-se quem pensa ser época de exaltações). Aquela espinha dorsal do sol no espelho das águas É refresco, não arde. No entanto, não deixa de cuspir as algas (com soslaio), De segregá-las (estas rosnam-lhe com o olhar), Lombrigas de cabeças monstruosas, Axilas misteriosas Da maresia. E elas ...

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As Rochas

  As rochas que vi hoje São dentes da terra Ossadas de dinossauro Entregues à neblina e ao salitre Devoradas por monstros que têm Hálito a algas E têmporas gélidas de nevoeiro. Ficam, ali, eternas, Inertes, caladas, A sustentar poças de águas paradas, Com crustáceos pateticamente mortos, de patas viradas, Oceanos inteiros Musgos e lapas. Tanta vida por entre as rochas que vi hoje. Gaivotas e pombas Cães perdidos Até amantes. Que mistério em tanto silêncio que suportam As rochas.   Abigail Ribeiro 27 de julho de 2020  

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A Natureza do Vento

  Naquele ano levantou-se um vento diferente dos outros ventos. Como, de outra forma, se explica Os estores esvoaçantes, As suas barras metálicas a bater, insistentes, nas paredes, As janelas escancaradas no Centro de Saúde, Os corredores de vento no emprego? O vento invadia todos os espaços. Vinha de fora e tomava com dedos de espectro Todos os prédios e as casas outrora impenetráveis. Só os quintais e as quintas não estranharam. Os seus habitantes já caminhavam com a queimadura do vento ...

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O dia dos homens (Estranho fruto)

  Naquele dia Não havia Senão homens. Varridos de delírios, Apenas homens. Não me lembro de outro dia assim. Apenas homens. Sentados em cadeiras amarelas Ou inquietos em sapatos incessantes Com raiva nas unhas, Que mordiam as palmas das mãos Ou dilacerados no peito, Matando-se por dentro em ravinas, Dependurando pescoços Mas não ainda. Mar a dentro Mas não ainda. Na linha férrea Mas não ainda. Quase. Quase. Por isso aguardavam Na sala de espera da urgência de psiquiatria. Como figos maduros cheirando a morte Mas não ainda.   Abigail Ribeiro 23 de fevereiro de 2021

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A CORTINA

  O outono é uma cortina castanha Esvoaçante, translúcida. Filtra luz dourada E tudo fica um pouco dourado E ruivo. É uma romã partida a meio E duas inteiras. O outono é um por do sol, É descanso e é estudo Ninho Fumo Convívio mudo. O outono é queda, sombras E vontade de voltar a aprender.     Abigail Ribeiro 27 de setembro de 2020  

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