Poema repetido para Kierkegaard

  O banho fez o dia. A manhã nasceu depois de se lavar. Tudo o resto automatizou-se Na engrenagem das peças E fez-se um. Lavar é o secretariado da prontidão, haja ou não no ar o espírito de melancia da relva cortada. (Os palpos da aranha deixam de fazer sentido nos cantos.) Desejar a água é a natureza das plantas E repeti-lo é saber contar os dias (são ciclos e ciclos.) O tempo deixa ver-se na mudança dos corpos entre as estacas da partitura (imagem terrível a de uma flor a ...

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Onde se amontoa o milho

  Eu guardo o teu segredo e tu guardas o meu. Escapulo-me do rebuliço, (vou ao teu encontro) afasto as canas com uma mão (vou ao teu encontro) e com a outra, o cabelo do milho com um braço (tenho um novelo quente no tórax) e com o outro (uma alegria pulsa no pássaro dentro do ovo). Os meus passos, velozes (o movimento ascendente dos joelhos) indiferentes ao burburinho da relva (a consternação que diz não escuto), ao arranhão com que as silvas sempre surpreendem (detenho-me um pouco na dor). E afirmo-te: Se ...

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As Ondas

  Continuo ao pé do mar, Os meus olhos no ir e no voltar mas desta vez na expectativa de que o mar viesse molhar viesse molhar-me os pés (eu ali sentada na areia molhada) e de repente fosse (ele) como um cão a lamber as pontas dos dedos e nesse contacto acendesse toda a rede eléctrica da sensibilidade e todo o corpo fosse ressuscitado pela ternura do animal e a seguir passasse a ver-lhe os olhos (sempre os teve e eu não os via, que morta andava). Mas não foi ...

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Intimidade

  A intimidade é uma espécie de vapor de água entre silhuetas. Tem tato fino, Toca ao de leve o nome, di-lo muitas vezes, baixinho, guarda-o. A intimidade fecha os olhos e sente. Abre os olhos e colhe frutos. (É um limoeiro a que se estende um braço. Uma mão arranca.) Nem sempre os come. (Há cestos cheios de maçãs, peras, laranjas à sombra. Esperam.) As oliveiras que se contorcem ao longo de um eixo longitudinal são santuário de intimidade. Abrigam-na as voltas, a repetição, a cronologia que se conhece E aquele ...

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Impasse nas rosas

  E assim foram... De pétala em pétala em pétala em pétala em pétala em pétala. Havia muitas direções em cada flor. O vento agitava as saias, Levantava-as, baixava-as, Levantava-as outra vez. As cores eram agradáveis Rosa velho, rosa pálido Como num quadro japonês, De forma que, por vezes, se esqueciam do que ali faziam e por que ali estavam (para onde íam!). Os cabelos fustigavam e tinham a ilusão de se mover, mas embalavam-se (e quase adormeciam) enquanto sobrevoavam as orelhas das rosas, naqueles labirintos de tons pastel E davam por si em comparações impossíveis com ...

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Olhar para dentro

    em memória do meu avô José Fernando Pereira Coutinho (18/03/1929-31/05/2022)     Os olhos fecharam-se. A luz entrava na câmara Depois da antecâmara, Transformando a tenda das pálpebras Num espectáculo de sombras chinesas. Simples, tensionadas como pele de tambor, Retumbavam pulsos surdos de luz. Com efeito, a luz entrava e não saía, Olhava para dentro, De face voltada para a nuca. Era como estar na barriga de um grande peixe Por três dias e três noites. Nauseabundo e escuro, o ventre do peixe, Profundo e interior, sem poros ...

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A passagem dos peixes

  No fundo do mar há um espelho de cabo dourado. Está lá pousado. Os peixes passam, Inexoráveis e encantados, Agitando gelatinas de fada, Nas suas mangas de cetim. São braços e pernas que caminham, Nadando, E fazendo-o, Levantam areias à sua passagem, Penetram túneis de água, Transpondo-se para espaços assombrados E sigmoides de tempo desconhecido, Imergulhado. Cruzeiro Seixas compreendeu-os, Sanguinolentos e antropomórficos, Seccionados e com tripés. Eu sei pouco sobre os peixes, Sobre as suas escamas e respiração, Mas vi o espelho, Mas vi o espelho.   Abigail Ribeiro 14 de março de 2022   Imagem: ...

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Salvação (Salvia officinalis)

  Sento-me contigo à mesa, À mesa possível. É uma mesa corrida (não, não é). Com bancos corridos (talvez), Onde se sentam e de onde se levantam Estranhos. Eu também sou estrangeira. E não tenho onde reclinar a cabeça. O meu leito faz-se no andar E a minha almofada é o ver. Não tarda chegará o alimento, que é a luz do entardecer. Sob o seu prisma me aquietarei, Enrolada, larvar E esperarei o adormecer debaixo de pálpebras quentes e o acordar a salvo.   Abigail Ribeiro 19 de fevereiro ...

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Mesa

    Há uma mesa algures no deserto Tu não a vês como ela é Nem sabes quem a pousou ali Ela é somente. Quatro pernas Um tampo. E mais nada. No deserto há o golpe de sol, A areia e o vento. Eu não a vejo como ela é. A toalha é branca e simples. Há aromas de flores, cedro e limão. Põe a mesa por favor (como é a tua mesa?). Posso sentar-me e comer contigo? Não tarda, vou embora. Que eu sou feita de ir ...

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A Natureza do Vento

  Naquele ano levantou-se um vento diferente dos outros ventos. Como, de outra forma, se explica Os estores esvoaçantes, As suas barras metálicas a bater, insistentes, nas paredes, As janelas escancaradas no Centro de Saúde, Os corredores de vento no emprego? O vento invadia todos os espaços. Vinha de fora e tomava com dedos de espectro Todos os prédios e as casas outrora impenetráveis. Só os quintais e as quintas não estranharam. Os seus habitantes já caminhavam com a queimadura do vento ...

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