Silvas

Todas as silvas entre ti e o mundo como era antes

 

A primeira vez que vi aquele sorriso em ti foi no dia em que fizeste quatro anos. Um sorriso de boca fechada, cobrindo os dentes, de cabeça baixa e olhos que perscrutavam, tímidos, o ambiente. Era um sorriso envergonhado. Estavas à cabeceira de uma mesa comprida, rodeada de meninos e meninas que te cantavam os parabéns. No centro da mesa, o bolo de chocolate com gomas, as velas acesas e tu, ali, contente e tímido.

Isso foi no ano passado. Este ano não foi assim.

Em março, passámos a estar em casa quase todo o tempo. Tu dizias que não tinhas saudades de ir à escola. Que tinhas saudades dos amigos, mas não das professoras, e que podíamos ficar assim, sempre em casa.

Víamos desenhos animados, desenhávamos, pintávamos, fazíamos trabalhos manuais, aprendíamos os dias da semana em várias línguas, até em Mahori, cozinhávamos, comíamos (tinhas sempre muita fome) e não querias dormir.

Eu tossia. Perguntaste um dia o que era aquilo que estava a matar-me. Perguntaste-o uma vez em que estava a adormecer-te. Tentei esclarecer-te e tranquilizar-te. Mas, muitas noites disseste que não querias morrer, não querias ficar velhinho. Porquê? “No Céu não há parques, nem bicicletas nem patins e lá não vou ser menino, vou ser velhinho”. “Posso dar-te a mãozinha no caixão e vou contigo?”, perguntaste.

Durante o dia saltavas em cima da minha cama e do teu pai com o teu irmão. Rias às gargalhadas, embrulhado em cambalhotas. Nesses momentos estavas feliz por ter um irmão. Ele imitava-te, pequenino e mudo, mas expressivo.

Noutros momentos, o teu irmão era um buraco negro que sugava toda a atenção dos pais e tu só querias a sua exclusividade. Repelia-o, então, com patadas de ciúme e encontrões de raiva. De repente, ele encarnava todos os teus impedimentos, todas as barreiras, todos os entraves, todas as cercas, todas as grades, todas as farpas, todas as silvas entre ti e o mundo como era antes.

Íamos à varanda ao encontro da natureza. Pelas janelas entrava-nos em casa o altifalante da Câmara Municipal, da Polícia, dos Bombeiros. “Fiquem em casa!”.

Contornavas os telefonemas dos avós. Evitavas, fugias. E, no entanto, querias estar com eles, pedias para estar com eles, para dormir em sua casa. Um telefone era, para ti, o longínquo e o próprio desamparo. Não querias assim. Não com um nevoeiro no olhar e no tocar, uma mão a colar o telefone à orelha e à bochecha.

 

Abigail Ribeiro

março de 2020

 

Imagem da autoria de Gil Reis. Fonte da imagem: olhares.com/silvas-foto9575465.html

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